Taxa de licença para localização ou exercício de atividades. Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, art. 56. Município de Farroupilha. Incompetência para instituição e cobrança, no caso de pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco. Superveniência da Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019 (“Lei da Liberdade Econômica”)

Prezado(s) Senhor(es),

A Comissão Especial de Direito Tributário da Ordem dos Advogados do Rio Grande do Sul (OAB/RS), na pessoa do seu Presidente, Dr. Rafael Korff Wagner, solicita parecer a respeito da (aparente) antinomia entre o art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, que instituiu a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no Município de Farroupilha, e o art. 3.º, I, da Lei n. 13.874, de 20 de setembro de 2019 (“Lei da Liberdade Econômica”), que declarou o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação.

Do seu ponto de vista, a (aparente) antinomia entre o art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, de um lado, e o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, de outro, decorreria do fato de que o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, contradiria a hipótese de incidência da taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no que diz respeito às atividades de baixo risco, prevista pelo art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, no Município de Farroupilha.

1. DA AUSÊNCIA DE ANTINOMIA ENTRE O ART. 56 DA LEI N. 1.007, DE 7 DE OUTUBRO DE 1974, E O ART. 3.º, I, DA LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA

Com relação à consulta, entendemos que não há, a rigor, antinomia entre o art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974 (“Art. 56. A Taxa de Licença para Localização ou Exercício de Atividade tem como fato gerador o exercício do regular de poder de polícia”), e o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica (“Art. 3.º São direitos de toda pessoa natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômico do País, observado o disposto no parágrafo único: I – desenvolver atividade econômica de baixo risco, para o qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais, sem a necessidade de quaisquer atos públicos de liberação da atividade econômica”).

Como se sabe, a antinomia é o fenômeno que ocorre toda vez que duas normas atribuem ao mesmo suporte de fato consequências jurídicas incompatíveis entre si: “em virtude de uma primeira norma, N1, o suporte de fato F tem a consequência G; em virtude de uma segunda norma, N2, o mesmo suporte de fato F tem a consequência não-G. Estas situações de conflito, de contraste, de incompatibilidade entre normas, se chamam comumente de ‘antinomia'”, ensina GUASTINI[1].

No caso, o suporte de fato da norma jurídica enunciada pelo art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974 (“o exercício regular do poder de polícia”), não é o mesmo suporte de fato da norma jurídica enunciada pelo art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica (“desenvolver atividade econômica de baixo risco, para o qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais”). Por isso, o suporte de fato da norma jurídica enunciada pelo art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, não se sobrepõe nem totalmente nem parcialmente sobre o suporte de fato da norma jurídica enunciada pelo art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica (“desenvolver atividade econômica de baixo risco, para o qual se valha exclusivamente de propriedade privada própria ou de terceiros consensuais”), ou vice-versa.

Dessa maneira, entre o art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, que instituiu a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no Município de Farroupilha, e o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que declarou o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, não há antinomia, seja total[2], seja parcial[3].

2. DA COMPETÊNCIA ANEXA PARA A INSTITUIÇÃO E COBRANÇA DE TAXAS

Contudo, a ausência de antinomia entre o art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, de um lado, e o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, de outro, não implica, necessariamente, que o Município de Farroupilha possa instituir e cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, tais como serviços advocatícios, que foram enumerados como atividade de baixo risco pelo item CCLIV do Anexo I da Resolução n. 51, de 11 de junho de 2019, do Comitê para Gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, que definiu o conceito de baixo risco, para dispensa de atos públicos de liberação, relativos à operação ou funcionamento de atividade econômica (Lei da Liberdade Econômica, Art. 3.º, § 1.º, I)[4].

Para instituir e cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, é necessário que o Município de Farroupilha seja competente para exercer o respectivo poder de polícia, como “atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato […], em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos”[5]. Embora a competência para a instituição e cobrança de taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição, seja concorrente[6], para a sua instituição e cobrança a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão ser competentes ou para exercer o poder de polícia ou para prestar o serviço público: é a chamada competência anexa, de que trata o art. 80 do Código Tributário Nacional (CTN) (“Art. 80. Para efeito de instituição e cobrança de taxas, consideram-se compreendidas no âmbito das atribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios aquelas que, segundo a Constituição Federal, as Constituições dos Estados, as Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios e a legislação com elas compatível, competem a cada uma dessas pessoas de direito público.”)

A título elucidativo, o art. 80 do CTN, que dispõe sobre a competência anexa, para a instituição e cobrança das taxas, repousa suas raízes sobre o princípio da conexão (Konnexitätsprinzip), consagrado pelo § 1.º do art. 104(a) da Lei Fundamental da República Federal Alemã, de 8 de maio de 1949 (Grundgesetz für dia Bundesrepublick Deutschland)[7]. De acordo com este princípio, num Estado Federativo (der Bundesstaat), a Federação (der Bund) e os Estados (die Länder) deverão suportar, separadamente, as despesas decorrentes do exercício das suas competências[8].

Por razões do princípio da conexão (Konnexitätsprinzip), reproduzido pela competência anexa, para a instituição e cobrança de taxas (CTN, Art. 80), o eg. STF já declarou, por exemplo, a inconstitucionalidade da taxa estadual de expediente, para a aprovação de programação de rádio e televisão (RE 73.895, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Gallotti, vu, j. 19/09/1972, DJ 01/12/1972)[9] e a inconstitucionalidade da taxa de serviços estaduais, para o funcionamento de jogos lícitos e amplificadores de som (Rp 991, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cunha Peixoto, vu, j. 10/05/1979, DJ 15/10/1979)[10].

Sendo assim, o Município de Farroupilha poderá instituir e cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, se e somente se for competente para licenciar a localização ou o exercício de atividades de baixo risco. Caso contrário, não, porque as taxas são tributos contraprestacionais ou comutativos, no sentido de que financiam as despesas públicas decorrentes seja do exercício do poder de polícia, seja da prestação, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis (princípio da equivalência)[11].

3. DA INCOMPETÊNCIA DO MUNICÍPIO DE FARROUPILHA PARA A INSTITUIÇÃO E COBRANÇA DA TAXA DE LICENÇA PARA LOCALIZAÇÃO OU EXERCÍCIO DE ATIVIDADES DE BAIXO RISCO

No que diz respeito a essa questão, o Município de Farroupilha poderá argumentar que seja competente para licenciar a localização ou o exercício de atividades de baixo risco, conforme o art. 59, caput, da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, que dispõe o seguinte:

“Art. 59. Nenhuma atividade poderá ser exercida no Município, sem o prévio licenciamento.”

Todavia, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, é inquestionável que a superveniência do art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que declarou o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação[12], suspendeu a eficácia do art. 59, caput, da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974.

Se não, vejamos.

Em matéria de competência legislativa, o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica encontra o seu fundamento de validade no art. 24, I, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988:

“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal dispor sobre: I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico”. (grifou-se)

A propósito, o art. 24, I, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, é remetido, expressamente, pelo próprio art. 1.º, § 4.º, da Lei da Liberdade Econômica, como fundamento de validade do seu art. 3.º, I:

“Art. 1.º […] § 4.º  O disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei constitui norma geral de direito econômico, conforme o disposto no inciso I do caput e nos §§ 1º, 2.º, 3.º e 4.º do art. 24 da Constituição Federal, e será observado para todos os atos públicos de liberação da atividade econômica executados pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, nos termos do § 2º deste artigo”. (grifou-se)

Como norma geral de direito econômico, decorrente do exercício da competência legislativa concorrente, prevista pelo art. 24, I, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica suspendeu, parcialmente, a eficácia do art. 59, caput, da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, à luz do art. 24, § 4.º, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 (“Art. 24. […] § 4.º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia de lei estadual, no que lhe for contrário”).

No ordenamento jurídico brasileiro, a competência legislativa concorrente é não cumulativa, ou seja, reserva à União a competência para a edição de normas gerais[13], enquanto aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, a competência para a edição de normas suplementares, seja para o o acréscimo de pormenores (competência complementar), seja para a supressão de lacunas (competência suplementar)[14].  Por isso, a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia de lei estadual, distrital ou municipal, a teor do art. 24, § 4.º, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988.

Esta é a lição de Menezes de Almeida:

“Ao admitir, no parágrafo anterior [§ 3.º], a competência supletiva estadual [municipal] na ausência de normas gerais federais, a Constituição não destituiu a União de sua competência de editar aqueles normas. Apenas provê para que os Estados [e os Municípios] não fiquem impedidos de desempenhar atribuições por falta de normação a cargo da União. Mas esta decidiu exercer a competência que originalmente lhe pertence, prevalecerão as normas gerais que vier a produzir, suspendendo-se a eficácia da legislação estadual [municipal] que com elas conflitar.

Tendo optado, na espécie, pela suspensão da eficácia, deixou claro a Constituição que não se trata de hipótese de revogação da lei estadual [municipal] pela lei federal. Isto significa que, eventualmente se der a revogação da lei federal de normas gerais, a lei estadual [municipal] que teve sua eficácia suspensa por incompatibilidade com aquelas recobra a eficácia e volta a aplicar-se.”[15]         

Em igual sentido, segue a jurisprudência do eg. STF: ADI 903 (Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 22/5/2013, DJe 07/02/2014)[16]; ADI 5.568 (Tribunal Pleno, Rel. p/acórdão Min. Edson Fachin, j. 27/09/2019, DJe 15/10/2019)[17].

Portanto, o Município de Farroupilha não é competente para licenciar a localização ou o exercício de atividades de baixo risco, conforme o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que suspendeu, parcialmente, a eficácia do art. 59, caput, da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, a teor art. 24, § 4.º, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Consequentemente, não pode cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, porque não suporta despesas públicas decorrentes da licença para a localização ou o exercício de atividades de baixo risco (princípio da equivalência).

4. DA APLICABILIDADE DO ART. 3.º, I, DA LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA AO DIREITO TRIBUTÁRIO     

Entretanto, o Município de Farroupilha poderá contrapor que o § 3.º do art. 1.º da Lei da Liberdade Econômica prescreve que a declaração do direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, prevista pelo seu art. 3.º, I, não se aplicaria ao direito tributário. Enuncia o § 3.º do art. 1.º da Lei da Liberdade Econômica que “O disposto neste Capítulo e nos Capítulos II e III desta Lei não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro, ressalvado o disposto no inciso X do caput do art. 3.º desta Lei” (grifou-se).

Embora tenhamos concluído que o Município de Farroupilha não poderá cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, sob o argumento de que não tem competência para licenciar a localização ou o exercício de atividades de baixo risco, conforme o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que suspendeu, parcialmente, a eficácia do art. 59, caput, da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, a teor art. 24, § 4.º, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, não temos dúvida que o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que declarou o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, seja aplicável ao direito tributário.

Antes de mais nada, o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, previsto pelo art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, é um dos desdobramentos da liberdade de iniciativa, consagrada pelo parágrafo único do art. 170 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 (“Art. 170. […] Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”)

Dado o status de direito fundamental, a liberdade de iniciativa tem duas dimensões. A primeira é a dimensão subjetiva, que atribui para o seu titular um ou mais interesses juridicamente tutelados por meio de direitos públicos subjetivos. A segunda é a dimensão objetiva, que irradia efeitos sobre o direito público e o direito privado como ordem objetiva de valor(es) com estrutura normativa de princípio jurídico[18].

A saber, a teoria da multidimensionalidade dos direitos fundamentais, no sentido de que os direitos, as liberdades e as liberdades fundamentais têm uma dimensão subjetiva, que atribui para o seu titular um ou mais interesses juridicamente protegidos por meio de direitos públicos subjetivos, e uma dimensão objetiva, que irradia efeitos sobre o direito público e o direito privado como ordem objetiva de valores com estrutura normativa de princípio jurídico, foi construída pela teoria dos direitos fundamentais, a partir de precedentes do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgereciht), que chegaram à conclusão de que os direitos, as liberdades e as garantias fundamentais estruturariam uma ordem objetiva de valores[19]. Essa ordem objetiva de valores se desdobraria no dever de o legislador, o administrador e o juiz de interpretar as normas de direito ordinário conforme os valores dos direitos fundamentais (dever de interpretação conforme) e no dever de o legislador, o administrador e o juiz de proteger os valores dos direitos fundamentais em toda e qualquer decisão (dever de proteção)[20].

Nas palavras de ALEXY:

“Segundo a jurisprudência reiterada dos Tribunal Constitucional Federal, as normas de direitos fundamentais contêm não apenas direitos subjetivos de defesa do indivíduo contra o Estado, elas representam também uma ordem objetiva de valores, que vale como decisão constitucional fundamental para todos os ramos do direito, e que fornece diretrizes e impulsos para a legislação, a Administração e a jurisprudência”[21].

Dessa forma, o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que declarou o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, quer queira, quer não, é aplicável ao direito tributário, na medida em que constitui um dos desdobramentos da liberdade de iniciativa, que irradia efeitos sobre o direito público e o direito privado como ordem objetiva de valor(es) com estrutura normativa de princípio jurídico (dever de interpretação conforme), e que deve ser protegida, na maior medida possível, nas decisões legislativas, administrativas e judiciais (dever de proteção).

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante ao exposto, entre o art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, que instituiu a taxa de licença para localização ou exercício das atividades, no Município de Farroupilha, e o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que declarou o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, não há antinomia, seja total, seja parcial.

Contudo, a ausência de antinomia entre o art. 56 da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, de um lado, e o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, de outro, não implica, necessariamente, que o Município de Farroupilha poderá cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, tais como serviços advocatícios, que foram enumerados como atividade de baixo risco pelo item CCLIV do Anexo I da Resolução n. 51, de 11 de junho de 2019, do Comitê para Gestão da Rede Nacional para Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios, que definiu o conceito de baixo risco, para dispensa de atos públicos de liberação, relativos à operação ou funcionamento de atividade econômica, conforme o art. 3.º, § 1.º, I, da Lei da Liberdade Econômica.

Em realidade, o Município de Farroupilha poderá cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, se e somente se for competente para licenciar a localização ou o exercício de atividades de baixo risco. Caso contrário, não, porque as taxas são tributos contraprestacionais ou comutativos, no sentido de que financiam as despesas públicas decorrentes seja do exercício do poder de polícia, seja da prestação, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis (princípio da equivalência).

Do nosso ponto de vista, o Município de Farroupilha não é competente para licenciar a localização ou o exercício de atividades de baixo risco, conforme o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que suspendeu, parcialmente, a eficácia do art. 59, caput, da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, a teor art. 24, § 4.º, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Por via de consequência lógica, não poderá instituir e cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, porque não suporta despesas públicas decorrentes da licença para a localização ou o exercício de atividades de baixo risco (princípio da equivalência).

Quanto a essa conclusão, o Município de Farroupilha poderá contrapor que o § 3.º do art. 1.º da Lei da Liberdade Econômica prescreve que a declaração do direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, prevista pelo seu art. 3.º, I, não se aplicaria ao direito tributário. Enuncia o § 3.º do art. 1.º da Lei da Liberdade Econômica que “O disposto neste Capítulo e nos Capítulos II e III desta Lei não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro, ressalvado o disposto no inciso X do caput do art. 3.º desta Lei” (grifou-se).

Embora tenhamos concluído que o Município de Farroupilha não poderá instituir e cobrar a taxa de licença para localização ou exercício de atividades, no caso de a pessoa (natural ou jurídica) desenvolver atividade econômica de baixo risco, sob o argumento de que não tem competência para licenciar a localização ou o exercício de atividades de baixo risco, conforme o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que suspendeu, parcialmente, a eficácia do art. 59, caput, da Lei n. 1.007, de 7 de outubro de 1974, a teor do art. 24, § 4.º, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, não temos dúvida que o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica, que declarou o direito de toda pessoa (natural ou jurídica) de desenvolver atividade econômica de baixo risco, independentemente de qualquer ato público de liberação, seja aplicável ao direito tributário.

Certamente, o art. 3.º, I, da Lei da Liberdade Econômica é aplicável ao direito tributário, na medida em que constitui um dos desdobramentos da liberdade de iniciativa, que irradia efeitos sobre o direito público e o direito privado como ordem objetiva de valor(es)ƒ com estrutura normativa de princípio jurídico (dever de interpretação conforme), e que deve ser protegida, na maior medida possível, nas decisões legislativas, administrativas e judiciais (dever de proteção).

S.m.j., é o parecer.

Diego Galbinski

Pedro Acosta de Oliveira

[1] Guastini, Riccardo. Le fonti del diritto. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 2010, p. 355. Tradução livre do original: “In virtù di una prima norma, N1, la fattispecie F ha la conseguenza G; in virtù di una seconda norma, N2, la stessa fattispecie F ha la conseguenza non-G. Queste situazioni di conflitto, contrasto, o incompatibilità tra la norme si dicono comumente ‘antinomie'”.

[2] A antinomia é total quando duas normas atribuem consequências jurídicas incompatíveis entre si para a mesma classe de suporte de fato. Por exemplo, uma norma qualifica como lícito e outra norma, como ilícito o jogo de azar (Guastini, 2010, p. 357)

[3] A antinomia parcial pode ser: (i) unilateral, quando uma norma descreve uma classe de suporte de fato que esteja inteiramente incluída na classe de suporte de fato descrita por outra norma — por exemplo, uma norma N1 proíbe fumar (a inteira classe do suporte de fato), enquanto outra norma N2 proíbe fumar cigarro eletrônico (uma subclasse do suporte de fato); (ii) bilateral, quando uma norma descreve uma classe de suporte de fato que se intersecciona com a classe de suporte de fato descrita por outra norma — por exemplo, uma norma N1 proíbe a caça de javali e de lebre, enquanto outra norma N2 proíbe a caça de lebre e de raposa (Ibid., p. 358).

[4] “Art. 3.º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: […] § 1.º Para fins do disposto no inciso I do caput deste artigo: I – ato do Poder Executivo federal disporá sobre a classificação de atividades de baixo risco a ser observada na ausência de legislação estadual, distrital ou municipal específica”.

[5] CTN, Art. 78: “Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.”

[6] Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, Art. 145, II: “Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: […] II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição”.

[7] “(1) Der Bund und die Länder tragen gesondert die Ausgaben, die sich aus der Wahrnehmung ihrer Aufgaben ergeben, soweit dieses Grundgesetz nichts anderes bestimmt.”

[8] A respeito do princípio da conexão (Konnexitätsprinzip), vide Birk, Dieter. Steuerrecht. 13 ed. Heidelberg: C. F. Müller, 2010, p. 44. 

[9] “Taxa estadual de expediente, no tocante à aprovação de programação de rádio e televisão. Inconstitucionalidade do art. 41, XX, ‘c’, da Lei Mineira n. 4.492, de 14.06.1967. Extraordinário conhecido e provido.”

[10] “TAXA DE SERVIÇOS ESTADUAIS COBRADA PELO ESTADO DE GOIÁS PELA CONCESSÃO DE ALVARÁS PARA O FUNCIONAMENTO DE JOGOS LICITOS E AMPLIFICADORES DE SOM (LEI ESTADUAL N. 8042/75, SUBITEM 1.5.1, LETRAS “G” E “H”; COM BASE NO PODER DE POLICIA. INCONSTITUCIONALIDADE. REPRESENTAÇÃO JULGADA PROCEDENTE” (grifos do original).

[11] A respeito do princípio da equivalência, vide Vasques, Sérgio. O princípio da equivalência como critério de igualdade tributária. Coimbra: Almedina, 2008.

[12] Entendem-se por atos públicos de liberação “a licença, a autorização, a concessão, a inscrição, a permissão, o alvará, o cadastro, o credenciamento, o estudo, o plano, o registro e os demais atos exigidos, sob qualquer denominação, por órgão ou entidade da administração pública na aplicação de legislação, como condição para o exercício de atividade econômica, inclusive o início, a continuação e o fim para a instalação, a construção, a operação, a produção, o funcionamento, o uso, o exercício ou a realização, no âmbito público ou privado, de atividade, serviço, estabelecimento, profissão, instalação, operação, produto, equipamento, veículo, edificação e outros” (Lei da Liberdade Econômica, Art. 1.º, § 6.º).

[13] Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, Art. 24, § 1.º: “Art. 24.  Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: […] § 1.º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.”

[14] Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, Art. 24, §§ 2.º e 3.º, e 30, II: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: […] § 2.º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3.º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. […] Art. 30. Compete aos Municípios: […] II – suplementar a legislação federal e a estadual no que couber”.

[15] Menezes de Almeida, Fernanda Dias. Comentário ao § 4.º do art. 24. Gomes Canotilho, J.J.; Ferreira Mendes, Gilmar; Sarlet, Ingo Wolfgang; Streck, Leni Luiz (Coord). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 757 e 758.  

[16] “Lei 10.820/1992 do Estado de Minas Gerais, que dispõe sobre adaptação dos veículos de transporte coletivo com a finalidade de assegurar seu acesso por pessoas com deficiência ou dificuldade de locomoção. […] Como, à época da edição da legislação ora questionada, não havia lei geral nacional sobre o tema, a teor do § 3.º do art. 24 da CF, era deferido aos Estados-membros o exercício da competência legislativa plena, podendo suprir o espaço normativo com suas legislações locais. A preocupação manifesta no julgamento cautelar sobre a ausência de legislação federal protetiva hoje se encontra superada, na medida em que a União editou a Lei 10.098/2000, a qual dispõe sobre normas gerais e critérios básicos de promoção da acessibilidade das pessoas com deficiência. Por essa razão, diante da superveniência da lei federal, a legislação mineira, embora constitucional, perde a força normativa, na atualidade, naquilo que contrastar com a legislação geral de regência do tema (art. 24, § 4.º, CF/1988).”

[17] “Tratando-se de norma de natureza de direito do consumidor do serviço de telecomunicações e havendo conflito entre a disciplina federal e a estadual, deve aquela prevalecer. A norma federal, nestes casos, serve à homogeneidade regulatória, afastando a competência dos Estados. A ANATEL, entidade reguladora do setor, no exercício de sua competência normativa prevista nos arts. 19 e 22 da Lei 9.472/97, editou a Resolução 632/2014, que trata do Regulamento Geral de Direitos do Consumidor de Serviços de Telecomunicações. Segundo o art. 51 do RDC, o fornecimento do contrato pode ser por meio eletrônico, enquanto a norma estadual impugnada obriga o envio por meio de carta registrada. Assim, sobressai a competência da União, nos termos do art. 24, § 4.º […]”.

[18]         A literatura que versa sobre a dupla dimensão dos direitos, das liberdades e das garantias fundamentais, no direito comparado, em geral, e no direito alemão, em especial, é vasta. Entre monografias, capítulos de livros e artigos científicos, é impossível esgotar a bibliografia a respeito do tema. No direito comparado, vide: Möller, Kai. The global model of constitutional rights. Oxford: Oxford, 2012; Möller, Kai. Two conceptions of positive liberty: towards an autonomy-based theory of constitutional rights. Oxford Journal of Legal Studies, v. 29, n. 4, 2009, p. 757-786. Kommers, Donald P. Germany: Balancing rights and duties. Goldsworthy, Jeffrey (Ed.). Interpreting Constitutions. Oxford: New York, 2007. No direito alemão, por outro lado: Alexy, Robert. Theorie der Grundrechte. Berlin: Suhrkamp, 1986; Canaris, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e Direito Privado. Tradução de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimbra: Almedina, 2003; Hoffmann-Riem,  Wolfgang. Grundrechtsanwendung unter Rationalitäts-anspruch. Der Staat, v. 43, 2004, p. 203-233. No direito brasileiro, por fim: Dias, Eduardo Rocha. Direitos dos consumidores e deveres de proteção. Direitos Fundamentais & Justiça, ano 5, n. 15, abril/junho de 2011, p. 79-105; Sarlet, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11 ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2012; Sarlet, Ingo Wolfgang. A influência dos direitos fundamentais no Direito Privado: o caso brasileiro. Monteiro, António Pinto; Neuner, Jörg; Sarlet, Ingo Wolfgang (Org.). Direitos fundamentais e Direito Privado. Almedina: Coimbra, 2007.

[19] “Todavia, da mesma forma é correto que a Lei Fundamental, que não pretende ser um ordenamento neutro do ponto de vista axiológico (BVerfGE 2, 1 [12]; 5, 85 [134 et seq., 197 et seq.]; 6, 32 [40 s.]), previu também, em seu capítulo dos direitos fundamentais, um ordenamento axiológico objetivo, e que, justamente em função deste, ocorre um aumento da força jurídica dos direitos fundamentais (Klein-v. Mangoldt, Das Bonner Grundgesetz, Vorbem. B III 4 vor Art. 1 S. 93)”. Disponível em: www.servat.unibe.ch/dfr/bv007198.html. Acesso em: 31/08/2022. Tradução livre do original: “Ebenso richtig ist aber, dass das Grundgesetz, das keine wertneutrale Ordnung sein will (BVerfGE 2, 1 [12]; 5, 85 [134 ff., 197 ff.]; 6, 32 [40 f.]), in seinem Grundrechtsabschnitt auch eine objektive Wertordnung aufgerichtet hat und dass gerade hierin eine prinzipielle Verstärkung der Geltungskraft der Grundrechte zum Ausdruck kommt (Klein-v. Mangoldt, Das Bonner Grundgesetz, Vorbem. B III 4 vor Art. 1 S. 93).”

[20] “Este sistema de valores, que encontra o ponto central na personalidade humana e sua dignidade, que se desenvolve livremente dentro da comunidade social, precisa valer como decisão constitucional fundamental para todas as áreas do direito; legislativo, administração pública e judiciário recebem dele diretrizes e impulsos”.  Disponível em: www.servat.unibe.ch/ dfr/bv007198.html. Acesso em: 31/08/2022. Tradução livre do original: “Dieses Wertsystem, das seinen Mittelpunkt in der innerhalb der sozialen Gemeinschaft sich frei entfaltenden menschlichen Persönlichkeit und ihrer Würde findet, muss als verfassungsrechtliche Grundentscheidung für alle Bereiche des Rechts gelten; Gesetzgebung, Verwaltung und Rechtsprechung empfangen von ihm Richtlinien und Impulse. So beeinflußt es selbstverständlich auch das bürgerliche Recht”.

[21] Alexy, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2 ed. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2015, p. 440.

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