Prezado(s) Senhor(es),
Em 04/11/2009, o Consulente requereu a abertura do inventário e a partilha dos bens deixados pelo falecimento do seu progenitor (doc. 1, fls. 02-07). Com base nas primeiras declarações, complementadas às fls. 61-62, 67-68 e 73-76 (doc. 1), a Autoridade Administrativa avaliou os bens da herança (doc. 1, fls. 55-100) e calculou o imposto de transmissão causa mortis (doc. 1, fl. 100).
Por razões de inconstitucionalidade da progressividade do imposto de transmissão causa mortis, entretanto, o Consulente discordou da aplicação da alíquota de 8% (oito por cento) (doc. 1, fls. 103-104). A impugnação foi acolhida pelo MM. Juiz de Direito da 5.ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, que determinou a aplicação da alíquota de 1% (um por cento) (doc. 1, fl. 107). Em 29/06/2011, o Consulente pagou R$ (…), a título de imposto de transmissão causa mortis, à razão da alíquota de 1% (um por cento) (doc. 1, fl. 112).
Em face desta r. decisão, porém, o Estado do Rio Grande do Sul interpôs o Agravo de Instrumento (AI) n. (…), que foi improvido pela c. Oitava Câmara Cível do eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) (doc. 2). Irresignado, o Estado do Rio Grande do Sul interpôs o Recurso Extraordinário (RE) n. (…), que foi sobrestado até o julgamento do mérito do recurso extraordinário representativo da controvérsia (RE 562.045/RS) (doc. 3).
Julgado o mérito do recurso extraordinário representativo da controvérsia (RE 562.045/RS), no sentido da declaração da constitucionalidade da progressividade do imposto de transmissão causa mortis, em 25/09/2014, a c. Oitava Câmara Cível do eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) proferiu a decisão de retratação, de modo a decretar a reforma da r. decisão que acolhera a impugnação do cálculo do imposto de transmissão causa mortis (doc. 4).
Após o trânsito em julgado do r. acórdão, a Autoridade Administrativa calculou a diferença a maior do imposto de transmissão causa mortis, decorrente da aplicação da alíquota de 8% (oito por cento). Como o Consulente, intimado, não a pagou, a Autoridade Administrativa, em 14/08/2017, formalizou o Auto de Lançamento n. (…), que constituiu o crédito tributário de R$ (…) , a título de imposto sobre transmissão causa mortis (R$ …), multa por infração material básica (R$ …) e juros de mora (R$ …) (“segundo lançamento tributário”).
Precluída a r. decisão administrativa que julgou procedente o lançamento tributário, a Autoridade Administrativa formalizou a Certidão de Dívida Ativa (CDA) n. (…), que instrui a petição inicial da Execução Fiscal n. (…), proposta pelo Estado do Rio Grande do Sul. Em 08/04/2020, o MM. Juiz de Direito da 14.ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca de Porto de Alegre/RS determinou a citação do Consulente para pagar a dívida ou garantir a execução.
Sendo assim, o Consulente solicita estudo sobre a (in)certeza e (i)liquidez da CDA n. (…), especialmente sobre os seguintes tópicos:
(i) Primeiro: a Autoridade Administrativa poderia ter introduzido modificação de critério jurídico (alíquota de 8%, ao invés da alíquota de 1%), utilizado pelo primeiro lançamento tributário, em consequência de decisão judicial ex post facto?
(ii) Segundo: a Autoridade Administrativa revisou o primeiro lançamento tributário, após o decurso do prazo de decadência?
(iii) Terceiro: no segundo lançamento tributário, a Autoridade Administrativa poderia ter aplicado multa por infração material básica e juros de mora?
Apesar de exercermos a função de Juiz Suplente da c. 2.ª Câmara do eg. Tribunal Administrativo de Recursos Fiscais (TARF), estamos aptos a responder aos quesitos formulados pelo Consulente: a uma, porque não julgamos o recurso voluntário, interposto pelo Consulente, em face da r. decisão administrativa que julgou procedente o segundo lançamento tributário; a duas, porque, até o momento, não examinamos matéria idêntica ou semelhante, no exercício da função de Juiz Substituto da c. 2.ª Câmara do eg. TARF.
- 1.º Da (In)certeza da Cda (…)
1.1 Da Introdução de Modificação de Critério Jurídico
Do nosso ponto de vista, a despeito da declaração de constitucionalidade da progressividade do imposto de transmissão causa mortis, no julgamento do mérito do recurso extraordinário representativo da controvérsia (RE 562.045/RS), a CDA n. 20/22019, que instrui a petição inicial da Execução Fiscal n. (…), proposta pelo Estado do Rio Grande do Sul em face do Consulente, é título (executivo extrajudicial) incerto. Com a devida vênia a posições contrárias, a CDA n. (…) formalizou crédito tributário constituído por lançamento suplementar, que encerrou procedimento de revisão do lançamento, por iniciativa de ofício da Autoridade Administrativa, para introduzir modificação de critério jurídico, em consequência de decisão judicial ex post facto ().
As razões indicadas, no segundo lançamento tributário, representam, na verdade, a introdução de modificação de critério jurídico, utilizado pela Autoridade Administrativa, no primeiro lançamento tributário, em consequência de decisão judicial ex post facto — que somente poderia ser realizada, com relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente, segundo o art. 146 do Código Tributário Nacional (CTN) ().
Se não, vejamos.
No imposto de transmissão causa mortis, a Autoridade Administrativa constitui o crédito tributário, através da modalidade de lançamento tributário, denominada lançamento por declaração. Nesta modalidade de lançamento, o crédito tributário é constituído, com base na declaração do Sujeito Passivo, que presta informações sobre a matéria de fato para a Autoridade Administrativa ().
No caso, a Autoridade Administrativa avaliou os bens e calculou o imposto de transmissão causa mortis, com base nas primeiras declarações, complementadas às fls. 61–62, 67–68 e 73–76 pelo Consulente (doc. 1). Determinada a expedição das guias de arrecadação, pago o imposto de transmissão causa mortis, homologada a partilha e expedido o formal, o crédito tributário foi extinto ().
Após a extinção do crédito tributário, todavia, sobreveio o julgamento do mérito do recurso extraordinário representativo da controvérsia (RE 562.045/RS), no sentido da declaração da constitucionalidade da progressividade do imposto de transmissão causa mortis. Em 25/09/2014, a c. Oitava Câmara Cível do eg. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) proferiu a decisão de retratação do r. acórdão que havia negado provimento ao Agravo de Instrumento (AI) n. (…), interposto pelo Estado do Rio Grande do Sul contra a r. decisão do MM. Juiz de Direito da 5.ª Vara de Família e Sucessões do Foro Central da Comarca de Porto Alegre, que acolhera a impugnação do cálculo do imposto de transmissão causa mortis (doc. 4).
Transitado em julgado o r. acórdão, a Autoridade Administrativa calculou a diferença a maior do imposto de transmissão causa mortis, decorrente da aplicação da alíquota de 8% (oito por cento). Como o Consulente, intimado, não provou o seu recolhimento, em 14/08/2017, a Autoridade Administrativa formalizou o lançamento tributário, que constituiu o crédito tributário de R$ (…), a título de imposto sobre transmissão causa mortis (R$ …), multa por infração material básica (R$ …) e juros de mora (R$ …)
Ao que se pode perceber, trata-se o segundo lançamento tributário de verdadeiro e genuíno lançamento suplementar, porque declarou a ocorrência do fato gerador, determinou a matéria tributável, calculou o montante do tributo devido e identificou o Sujeito Passivo da relação tributária (), e, ao mesmo tempo, encerrou o procedimento administrativo de revisão do lançamento, por iniciativa de ofício da Autoridade Administrativa, para substituir o lançamento anterior ().
Contudo, após a notificação do Sujeito Passivo, o lançamento somente pode ser revisado por impugnação do Sujeito Passivo, por recurso de ofício ou por iniciativa de ofício da Autoridade Administrativa (). No caso, o lançamento que havia constituído o crédito tributário do imposto de transmissão causa mortis foi revisado por iniciativa de ofício da Autoridade Administrativa.
Entretanto, o lançamento apenas pode ser revisado por iniciativa de ofício da Autoridade Administrativa na presença de três hipóteses. A primeira é quando a Autoridade Administrativa tem o dever de apreciar fato não conhecido ou provado. A segunda, quando a Autoridade Administrativa prova a ocorrência de fraude ou falta funcional. A terceira, quando a Autoridade Administrativa prova a omissão de ato ou formalidade especia ().
No caso, o primeiro lançamento tributário não foi revisado, porque a Autoridade Administrativa apreciara fato não conhecido ou provado; porque a Autoridade Administrativa provara a ocorrência de fraude ou falta funcional; porque a Autoridade Administrativa provara a omissão de ato ou formalidade especial. Na realidade, o lançamento que constituíra o crédito tributário de imposto de transmissão causa mortis foi revisado, de ofício, pela Autoridade Administrativa, a fim de aplicar a declaração de constitucionalidade da progressividade do imposto de transmissão causa mortis, no julgamento do mérito do recurso extraordinário representativo da controvérsia (RE 562.045/RS).
Porém, a declaração de constitucionalidade da progressividade do imposto de transmissão causa mortis, no julgamento do mérito do recurso extraordinário representativo da controvérsia (RE 562.045/RS), é decisão ex post facto. A respeito, dispõe o art. 146 do CTN que a mudança de critério jurídico do lançamento, em consequência de decisão judicial ex post facto, não pode ser introduzida, para revisão do lançamento tributário, por iniciativa de ofício da Autoridade Administrativa ().
Com base neste entendimento, precedentes vários concluíram, por exemplo, que “Novos critérios adotados pela autoridade administrativa somente podem ser aplicados em relação a um mesmo sujeito passivo quanto a fato gerador ocorrido posteriormente a sua introdução” (RE 100.481-0/SP, STF, T2, Rel. Min. Carlos Madeira, vu, j. 04/04/1986, DJ 02/05/1986); “A mudança de critério jurídico adotado pelo fisco não autoriza a revisão de lançamento” (Enunciado da Súmula n. 227, TFR, j. 18/11/1986, DJ 24/11/1986); “Em virtude do princípio da proteção à confiança, o art. 146 do Código Tributário Nacional impede a revisão do ato administrativo de lançamento tributário em desfavor do contribuinte pela alteração dos critérios jurídicos empregados pela autoridade administrativa” (EDcl no REsp 1.174.900/RS, STJ, T2, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, vu, j. 03/05/2011, DJe 09/05/2011).
De uma maneira geral, a razão de decidir dos precedentes citados repousa sobre o princípio que tutela, na maior medida possível, a justa e legítima expectativa dos particulares, com relação à estabilidade das relações de direito público: o princípio da proteção da confiança.
A respeito, disserta Karl Larenz:
“O ordenamento jurídico protege a confiança suscitada pelo comportamento do outro e não tem mais remédio que protegê-la, porque poder confiar, como vimos, é condição fundamental para uma pacífica vida coletiva e una conduta de cooperação entre os homens e, portanto, da paz jurídica.” ()
De modo que:
“[…] o cidadão deve poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições jurídicas ou relações, praticados ou tomados de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas normas.” ()
No âmbito da legislação infraconstitucional, o princípio da proteção da confiança é concretizado pelo art. 2.º, parágrafo único, XII, da Lei n. 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que dispõe o seguinte:
“Art. 2.º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência. Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de: […] XIII – interpretação da norma administrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.” (grifou-se)
Em situações semelhantes, o princípio da proteção da confiança também é promovido pelo art. 24 do Decreto-lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, na redação da Lei n. 13.655, de 25 de abril de 2018 (LINDB), que tem a seguinte redação:
“Art. 24. A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único. Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento
público.”
A proibição da revisão do lançamento tributário, por iniciativa de ofício da Autoridade Administrativa, que introduz mudança de critério jurídico, utilizado pelo lançamento anterior, em consequência de decisão judicial ex post facto, como desdobramento do princípio da proteção da confiança, reivindica um pequeno mergulho, no direito público comparado, já que este princípio foi transplantado de outros ordenamentos jurídicos, nomeadamente do ordenamento jurídico alemão.
A título meramente elucidativo,
“[…] o método do direito comparado pode oferecer uma gama de soluções muito mais ampla que uma ciência consagrada a um só país, pela simples razão de que os diferentes sistemas do mundo podem fornecer uma variedade de soluções das que poderiam conceber em toda uma vida o jurista mais imaginativo e especializado em seu próprio sistema.” ()
Visto que o direito comparado exerce a função de interpretação das normas pertencentes a um dado sistema, na experiência do direito comparado o princípio da proteção da confiança é norma de direito justo que integra o núcleo da ideia do estado de direito.
A respeito, aponta John Rawls:
“Um sistema jurídico é uma ordem coercitiva de normas públicas destinadas a pessoas racionais, com o propósito de regular sua conduta e prover a estrutura da cooperação social […] Quando essas regras são justas, elas estabelecem uma base para expectativas legítimas. Constituem as bases que possibilitam que as pessoas confiem numas nas outras e reclamem, com razão, quando não veem suas expectativas satisfeitas. Se as bases dessas reivindicações forem incertas, incertos também serão os limites das liberdades dos homens.” ()
Na família jurídica do common law, o ideal regulador da proteção da confiança tem longa tradição, que repercutiu sobre a conformação do princípio do estado do direito. De acordo com esta ideia, a principal finalidade do estado do direito seria “[…] criar segurança jurídica e, consequentemente, uma base segura para as regulações” ().
Além de aplicável contra a administração pública,
“Esta diretriz deveria ser aplicável também em relação ao próprio legislador. Resulta disto, como consequência importante, a proibição de leis penais retroativas (nulla poene sini lege praevia) e de outras leis que estabeleçam ou prevejam retroactivamente consequências com as quais, segundo uma prognose razoável, a pessoa afectada não podia contar no momento da prática da sua acção.” ()
Na evolução dos tipos do estado de direito, o ideal regulador da proteção da confiança, que girava em torno da segurança, no contexto do estado liberal, a partir do estado democrático, passou a ostentar elemento ético. A propósito da dimensão objetiva do princípio da proteção da confiança e da boa-fé, Larenz diz que este princípio tem “[…] um elemento de ética jurídica e outro que se orienta à segurança do trâfego. Um e outro não podem se separar” ().
Quanto ao elemento ético, ensina Larenz que “O componente de ética jurídica ressoa somente na medida em que a criação da aparência jurídica tem que ser imputável àquele em cuja desvantagem se produz a proteção daquilo que confiou” (). Em outras palavras, “uma confiança despertada de um modo imputável deve ser mantida quando efetivamente se acreditou nela. A suscitação da confiança é ‘imputável’ quando quem a suscita sabia o tinha que saber que o outro iria confiar” ().
Em virtude do seu elemento ético, o princípio da proteção da confiança, no ordenamento jurídico alemão, surgiu, inicialmente, na jurisprudência,
“[…] na discussão sobre a revogação de atos administrativos, a vinculatividade de informações da autoridade, a eficácia de contratos administrativos antijurídicos, o efeito externo de prescrições administrativas, a vinculação da administração em sua própria prática, a determinação da propriedade, da fundamentação de um direito de garantia de um plano – e last not least – a limitação da retroatividade da modificação da jurisprudência judicial superior.” ()
Em todas estas situações, a proteção da justa e legítima expectativa
“[…] parte da perspectiva do cidadão. Ela exige a proteção da confiança do cidadão que contou, e dispôs em conformidade com isso, com a existência de determinadas regulações estatais e outras medidas estatais. Ela visa à conservação de estados de posse uma vez obtidos e dirige-se contra as modificações jurídicas posteriores.” ()
Portanto, a despeito da declaração de constitucionalidade da progressividade do imposto de transmissão causa mortis, no julgamento do mérito do recurso extraordinário representativo da controvérsia (RE 562.045/RS), a CDA n. (…), que instruiu a petição inicial da Execução Fiscal n. (…), proposta pelo Estado do Rio Grande do Sul em face do Consulente, é título (executivo extrajudicial) incerto. A declaração de constitucionalidade da progressividade do imposto de transmissão causa mortis, no julgamento do mérito do recurso extraordinário representativo da controvérsia (RE 562.045/RS), é modificação do critério jurídico, utilizado pela Autoridade Administrativa, no primeiro lançamento tributário, que somente poderia ser introduzida, com relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente, segundo o art. 146 do Código Tributário Nacional (CTN) ().
1.2 Da Decadência Tributária
A CDA n. 20/22019, que instrui a petição inicial da Execução Fiscal n. 5019238-57.2020.8.21.0001, proposta pelo Estado do Rio Grande do Sul em face do Consulente, também poderia ser incerta, caso a Autoridade Administrativa tivesse revisado o lançamento, após o decurso do prazo de decadência — conforme o parágrafo único do art. 149 do CTN, que proíbe à Autoridade Administrativa de exercer a competência de revisar o lançamento tributário depois do transcurso do prazo de decadência ().
A decadência é o instituto jurídico que concretiza o princípio da segurança jurídica e os respectivos valores da estabilidade e previsibilidade nas relações de direito público e privado:
“[…] as idéias nucleares da segurança jurídica desenvolvem-se em torno de dois conceitos: (1) estabilidade ou eficácia ex post da segurança jurídica: uma vez adoptadas, na forma e procedimento legalmente exigidos, as decisões estaduais não podem ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes; (2) previsibilidade ou eficácia ex ante do princípio da segurança jurídica que, fundamentalmente, reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos, em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos.” ()
Dadas as suas peculiaridades, o instituto da decadência, no âmbito tributário, promove a segurança jurídica e os respectivos valores da estabilidade e previsibilidade em benefício do Sujeito Passivo. Em matéria de direito tributário, a segurança jurídica e os respectivos valores da estabilidade e previsibilidade adquirem
“[…] um relevo muito maior do que em todos os outros ramos do direito objectivo, uma vez que se trata de uma realidade em que os direitos e os interesses privados são fortemente marcados por acção do Estado, e de que resulta um cerceamento das disponibilidades de cada um sem directa contraprestação ou a compensação equilibrada no campo dos valores de fruição privada’ e daí a indispensabilidade de rigorosa certeza quanto ao objecto e dimensão de tal cerceamento em harmonia com o conteúdo das normas que o impõe e dos actos que o realizam, e, ainda, quanto à certeza e segurança de estabilidade das situações jurídicas decorrentes da aplicação de tais normas às realidades nelas previstas.” ()
No caso, o objeto da decadência constitui o lançamento suplementar, que é uma espécie do gênero lançamento tributário. A lei complementar em matéria tributária dividiu
“[…] a problemática dos prazos extintivos do direito do credor da obrigação tributária, fixando dois prazos, sendo o primeiro o lapso de tempo dentro do qual deve ser ‘constituído’ o crédito tributário, mediante a consecução do lançamento, e o segundo, o período no qual o sujeito ativo, se não satisfeita a obrigação tributária, deve ajuizar a ação de cobrança.” ()
Com relação à decadência tributária, o CTN prevê, no seu art. 173, I, uma norma geral e, no seu art. 150, § 4.º, uma norma especial, que dispõem a respeito da decadência do lançamento, nas modalidades de ofício, por declaração ou por homologação, respectivamente.
A norma geral de decadência tributária, prevista pelo art. 173, I, do CTN, dispõe o seguinte:
“Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I – do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.”
Como se pode perceber, esta norma de decadência tributária é aplicável aos lançamentos “que devam ser implementados pelo sujeito ativo como condição de exigibilidade do tributo, ou seja, o lançamento de ofício e o lançamento por declaração” (). De acordo com esta norma,
“Se cabível, no ano X, a consecução de lançamento de ofício (por ser essa a modalidade normal de lançamento do tributo, ou porque o sujeito passivo se tenha omitido no cumprimento do dever de declarar ou de pagar antes de qualquer exame do sujeito ativo), esse lançamento deve ser efetuado, sob pena de decadência, em cinco anos (ou seja, até o final do ano X+5). Da mesma forma, se foi apresentada a declaração exigida e a autoridade administrativa deixa de efetuar o lançamento no exercício em que poderia fazê-lo, o seu direito decai no referido prazo.” ()
Por sua vez, a norma especial de decadência tributária, prevista pelo art. 150, § 4.º, do CTN, tem o seguinte teor:
“Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa: […] § 4.º Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de 5 (cinco) anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, simulação ou fraude.”
Esta norma especial de decadência tributária dispõe a respeito do prazo de extinção do lançamento de ofício que “cabe à autoridade realizar quando constate […] inexatidão do sujeito passivo no cumprimento do dever de ‘antecipar’ o pagamento do tributo” (). Na modalidade do lançamento por homologação,
“Se o sujeito passivo ‘antecipa’ o tributo, mas o faz em valor inferior ao devido, o prazo que flui é para a autoridade manifestar-se sobre se concorda ou não com o montante pago; se não concordar, deve lançar de ofício, desde que faça antes do término do prazo cujo transcurso implica homologação tácita.”()
Portanto, os suportes fáticos das normas de decadência consideram a modalidade do lançamento tributário. Na modalidade do lançamento por homologação, o prazo de decadência é de 5 (cinco) anos, a contar da data da ocorrência do fato gerador. Nas demais modalidades de lançamento, o prazo de decadência é de 5 (cinco) anos, a contar do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado.
Então, o art. 150, § 4.º, do CTN “[…] aplica-se exclusivamente aos tributos ‘cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da autoridade administrativa’; o artigo 173, ao revés, aplica-se aos tributos em que o lançamento, em princípio, antecede o pagamento” (). Estas normas excluem-se mutuamente, pois são aplicadas, como regras, “[…] à feição de ‘all-or-nothing’, isto é, ‘Se ocorrem os fatos estabelecidos por uma regra, então: ou a regra é válida, e em tal caso, deve-se aceitar a resposta que ela fornece; ou a regra é inválida, e em tal caso, não influi na decisão.’” ()
De acordo com o modelo das normas, as regras são “[…] normas que apenas podem ser cumpridas ou não”, sendo “[…] aplicáveis de maneira disjuntiva […]” (). Por isso, “Se os fatos que estipula uma norma estão dados, então ou bem a norma é válida, em cujo caso a resposta que dá deve ser aceita, ou bem não é, e então não fornece nada à decisão” ().
A partir desta premissa, no conflito entre regras jurídicas
“[…] apenas uma delas poderá ser válida, cumprindo ao intérprete-aplicador identificar qual a válida. Para levar a cabo esta decisão o operador do direito será orientado por critérios fornecidos em geral pelo próprio ordenamento jurídico, v.g., ‘a regra outorgada pela autoridade superior ou a regra outorgada posteriormente, ou a regra mais específica.’ Em outras palavras, critério hierárquico (lex superior derrogat inferiori), critério cronológico (lex posterior derogat priori) e critério da especialidade (lex specialis derrogat generali)”.
No caso, a norma especial de decadência tributária, prevista pelo art. 150, § 4.º, do CTN, não prevalece sobre a norma geral, prevista pelo art. 173, I, do CTN. No imposto de transmissão causa mortis, a Autoridade Administrativa constitui o crédito tributário, através da modalidade do lançamento por declaração ().
Sendo assim, o termo inicial do prazo de decadência para a constituição do crédito tributário do imposto de transmissão causa mortis, no caso, foi 01/01/2013. Se é certo que o imposto de transmissão causa mortis não podia ser exigido antes da data da homologação do cálculo, isto é, 30/04/2012 (data da sentença homologatória), não é menos certo que o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado foi 01/01/2013 ().
Por via de consequência lógica, o termo final do prazo de decadência para a constituição do crédito tributário de imposto de transmissão causa mortis foi 31/12/2017. Todavia, a Autoridade Administrativa formalizou o Auto de Lançamento n. (…), que constituiu o crédito tributário de R$ (…), a título de imposto sobre transmissão causa mortis (R$ …), multa por infração material básica (R$ …) e juros de mora (R$ …), em 14/08/2017, antes de transcorrido o prazo de decadência, previsto pelo art. 173, I, do CTN, portanto.
Com relação à questão, não desconhecemos o fato de que o eg. TJRS firmou o entendimento de que, no caso, o termo inicial do prazo de decadência para a constituição do crédito tributário do imposto de transmissão causa mortis seria a data do trânsito em julgado da decisão de retratação proferida pela c. Oitava Câmara Cível (12/01/2015) (). Contudo, subjaz a jurisprudência do eg. TJRS sobre a matéria um ponto de vista interpretativo que pode ser tido como contra legem, eis que a decadência tributária é matéria reservada à lei complementar, a teor do art. 146, III, ‘b’ da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 (CRFB/1988) (). Segundo o art. 173, I, do CTN, o termo inicial do prazo de decadência para a constituição do crédito tributário é o primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado — que não corresponde à data do trânsito em julgado da decisão de retratação, mas à data da homologação do cálculo, no caso imposto de transmissão causa mortis, conforme o enunciado da Súmula 114 do eg. STF ().
Esta é a mesma cadeia de argumentos desenvolvida pela c. Segunda Turma do eg. Superior Tribunal de Justiça (STJ) para chegar à conclusão que “A existência de discussão judicial acerca do percentual de alíquota aplicável não impossibilita o Fisco de proceder ao lançamento com a intenção de evitar a decadência, cuja contagem não se sujeita a causas suspensivas ou interruptivas” (). Este entendimento foi reafirmado pela c. Segunda do eg. STJ, por exemplo, no julgamento do AgInt no AREsp 1.625.877/RS, ao decidir que, “à luz do que dispõe o art. 173, I, do CTN, o prazo para lançamento de ofício se inicia no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que poderia ocorrer a constituição do crédito tributário” (). Por isso, “No caso do tributo em questão (ITCD), a constituição pode ocorrer a partir do trânsito em julgado da sentença que homologou a partilha” ().
- 2.º Da (I)liquidez da Cda n. (…)
Com relação à iliquidez da CDA n. (…), que instrui a petição inicial da Execução Fiscal n. (…), proposta pelo Estado do Rio Grande do Sul, melhor sorte não assiste ao Consulente. Quanto à exclusão dos juros de mora e da multa por infração material básica, a jurisprudência produzida pelo eg. TJRS exige que o Sujeito Passivo, após o trânsito em julgado da decisão de retratação, não tenha sido intimado, previamente, nos autos do inventário, para pagar a diferença a maior do imposto sobre transmissão causa mortis. Em outras palavras, “Inexistindo intimação do contribuinte no que diz respeito ao lançamento complementar do ITCMD, inviável a imposição de penalidade e juros por força da inadimplência” () (grifou-se).
Porém, em 31/03/2015, o Consulente foi intimado do seguinte despacho, nos autos do inventário:
“Vistos. Intime-se o herdeiro para pagamento da diferença devida a título de ITCD (fls.191/93), no prazo de 15 dias. Decorrido prazo sem o pagamento espontâneo do intimado, rearquive-se, devendo o Estado do Rio Grande do Sul buscar o pagamento por meio de ação própria. Intimem-se.”
Visto que o Consulente, após ter sido intimado, não recolheu a diferença a maior do imposto de transmissão causa mortis, em 14/08/2017, a Autoridade Administrativa formalizou o Auto de Lançamento n. (…), que constituiu o crédito tributário de R$ (…), a título de imposto sobre transmissão causa mortis (R$ …), multa por infração material básica (R$ …) e juros de mora (R$ …).
Em casos tais, o eg. TJRS entende que são devidos não apenas os juros de mora, mas também a multa por infração material básica, sob o argumento de que “[…] o contribuinte foi devidamente notificado para efetuar o pagamento do ITCD ainda devido, não tendo apresentado qualquer nova impugnação ao cálculo reapresentado” (). Por isso, “[…] correto o lançamento efetuado pelo fisco” (), já que “[…] considerando o decurso do prazo sem o respectivo pagamento e não tendo o contribuinte se adiantado às medidas administrativas para constituição do crédito tributário, não há falar em exclusão ou em redução da multa cominada” ().
- 3.º Considerações Finais
Ante ao exposto, a CDA n. (…), que instrui a petição inicial da Execução Fiscal n. (…), proposta pelo Estado do Rio Grande do Sul, em trâmite perante a MM.ª 14.ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca de Porto de Alegre/RS, é título (executivo extrajudicial) incerto, na medida em que a Autoridade Administrativa não poderia ter introduzido modificação de critério jurídico (alíquota de 8%, ao invés da alíquota de 1%), utilizado pelo primeiro lançamento tributário, em consequência de decisão judicial ex post facto, a teor do art. 146 do CTN.
Por outro lado, chegamos à conclusão de que a Autoridade Administrativa formalizou o Auto de Lançamento n. (…), que constituiu o crédito tributário de R$ (…), a título de imposto sobre transmissão causa mortis (R$ …), multa por infração material básica (R$ …) e juros de mora (R$ …), antes do transcurso do prazo de decadência, previsto pelo art. 173, I, do CTN.
Além disso, entendemos que a Autoridade Administrativa poderia ter aplicado, no segundo lançamento tributário, multa por infração material básica e juros de mora, porque o eg. TJRS firmou o entendimento de que não são aplicáveis se e apenas se o Sujeito Passivo, após o trânsito em julgado da decisão de retratação, não tenha sido intimado, previamente, nos autos do inventário, para pagar a diferença a maior do imposto sobre transmissão causa mortis.
S.m.j., é o parecer.
Diego Galbinski
OAB/RS 47.105