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CRÍTICA À SOLUÇÃO DE CONSULTA COSIT Nº 42: INCIDÊNCIA DO IRPF SOBRE VALORES RECEBIDOS DE TRUST POR RESIDENTE DO BRASIL

Diego Galbinski & Jacquelyne Fleck

Em 2 de abril de 2020, foi publicada a Solução de Consulta COSIT n. 41, de 31 de março de 2020, que dirimiu dúvida sobre a interpretação da legislação tributária, relativa ao regime fiscal dos valores recebidos de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil.

A Solução de Consulta COSIT n. 41, de 31 de março de 2020, tem a seguinte ementa:

“Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF
RENDIMENTO RECEBIDO DE FONTE NO EXTERIOR.
O recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País é fato gerador do imposto sobre a renda e sujeita-se à tributação mensal mediante a aplicação da tabela progressiva mensal (carnê-leão) e na Declaração de Ajuste Anual.
Dispositivos Legais: Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 43, Lei n. 9.250, de 26 de dezembro de 1995, arts. 7º e 8º, Lei n. 7.713, de 1988, art. 8º, Regulamento do Imposto sobre a Renda (RIR/2018) arts. 118, caput, 119 e 120, aprovado pelo Decreto n. 9.580, de 22 de novembro de 2018, e Instrução Normativa RFB n. 1.500, de 29 de outubro de 2014, arts. 53, inciso II, e 54.
Assunto: Processo Administrativo Fiscal.
INEFICÁCIA PARCIAL.
É ineficaz a parte da consulta que não se refere à interpretação da legislação tributária e aduaneira federal, relativa aos tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB).
Dispositivos Legais: Instrução Normativa RFB n. 1.396, de 16 de setembro de 2013, arts. 1º, 3º, § 2º, e 18, incisos I e XIII.

Ao formalizar a consulta, a consulente narrou que seria beneficiária de trust instituído por seu marido no exterior. Desde o seu falecimento, passara a receber os valores pagos pelo trust. Frente à dúvida de interpretação, questionou se tais valores estariam sujeitos à incidência do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) ou do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos (ITCMD).

Na solução da consulta, a COSIT reconheceu que o trust seria um tipo contratual, no qual o instituidor (settlor ou grantor) — no caso, o marido da consulente — transfere a propriedade de parte ou da totalidade de seus bens a alguém (trustee), que assume a obrigação de administrá-los em benefício do settlor ou de pessoas indicadas por ele (beneficiários) — no caso, a consulente. Típico nos países da common law, seria formalizado através do trust deed, que deve conter todas as condições sob as quais serão administrados os bens (res), como obrigações do trustee, prazo de duração do trust e periodicidade de pagamentos.

Entretanto, apesar de ter reconhecido a consulente como beneficiária do trust, a COSIT qualificou o fato narrado na consulta como recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País. Por conseguinte, aplicou a norma tributária, prevista pelo art. 8º da Lei n. 7.713, de 22 de setembro de 1988, que dispõe o seguinte:

“Art. 8º Fica sujeito ao pagamento do imposto de renda, calculado de acordo com o disposto no art. 25 desta Lei, a pessoa física que receber de outra pessoa física, ou de fontes situadas no exterior, rendimentos e ganhos de capital que não tenham sido tributados na fonte, no País.” 

A partir dessa conclusão, a COSIT deduziu que o recebimento de valores de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil, se sujeitaria à tributação mensal (carnê-leão), através da aplicação da tabela progressiva mensal. Além disso, deveria ser levado à tributação na Declaração de Ajuste Anual, conforme o art. 8º da Lei n 9.250, de 26 de dezembro de 1995.

Todavia,  a Solução de Consulta COSIT n. 42, de 31 de março de 2020, não é a melhor resposta possível para a dúvida existente sobre o regime tributário dos valores recebidos de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil. O que é  preocupante,  devido  o seu efeito vinculante, no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB) ([1]).

Do nosso ponto de vista, a COSIT não levou em consideração que o trust é uma forma jurídica flexível, que admite várias aplicações: por exemplo, o trust imobiliário, o trust de investimentos e o trust de recebíveis ([2]). No caso, o trust que pagara valores à consulente, aparentemente, era um trust sucessório, na medida em que a causa dos pagamentos realizados por ele repousaria sobre a morte do esposo da consulente.  Por isso, ao invés de recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País, a COSIT deveria ter qualificado o recebimento de valores de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil, na espécie, como recebimento de valores por herança.

Ao contrário do recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País, o recebimento de valores por herança constitui uma hipótese de não-incidência do IRPF, prevista pelo art. 6º, XVI, da Lei n. 7.713, de 22 de dezembro de 1988 ([3]), reproduzida pelo art. 35, VII, ‘c’, do Decreto n. 9.580, de 22 de novembro de 2018 ([4]). Trata-se de uma isenção técnica, que apenas declara a não-incidência do IRPF sobre a herança, por constituir objeto de tributação do ITCMD, que compete aos Estados e ao Distrito Federal, segundo o art. 155, I, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988 ([5]).

Um dos mais importantes e respeitados clássicos do Direito Tributário Brasileiro, Rubens Gomes de Souza ensina que  “ uma determinada soma, para constituir renda, deve […] provir de uma fonte patrimonial determinada e já pertencente ao próprio indivíduo que seja titular da renda”  ([6]). Dessa forma, os valores recebidos por herança, que não proveem de uma fonte preexistente no patrimônio do contribuinte, a rigor, não constituiriam renda, muito menos renda tributável.

Portanto, a Solução de Consulta n. 42, de 31 de março de 2020, não é a melhor resposta possível para a dúvida sobre o regime tributário dos valores recebidos de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil. Do nosso ponto de vista, o trust que pagara valores à consulente, no caso, seria um trust sucessório: ao invés de recebimento de rendimentos oriundos do exterior por residente no País, a COSIT deveria ter qualificado o recebimento de valores de trust no exterior por pessoa física residente no Brasil como recebimento de valores por herançaque constitui hipótese de não-incidência (isenção técnica) do IRPF, prevista pelo art. 6º, XVI, da Lei n. 7.713, de 22 de dezembro de 1988, reproduzida pelo art. 35, VII, ‘c’, do Decreto n. 9.580, de 22 de novembro de 2018.

[1]() Instrução Normativa n. 1.396, de 16 de setembro de 2013, Art. 9º: “Art. 9º A Solução de Consulta Cosit e a Solução de Divergência, a partir da data de sua publicação, têm efeito vinculante no âmbito da RFB, respaldam o sujeito passivo que as aplicar, independentemente de ser o consulente, desde que se enquadre na hipótese por elas abrangida, sem prejuízo de que a autoridade fiscal, em procedimento de fiscalização, verifique seu efetivo enquadramento”.

[2]() FOERSTER, Gerd. O Trust do Direito Anglo-Americano e os negócios fiduciários no Brasil.  Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, Porto Alegre, 2013, p. 148.

[3]() “Art. 6º Ficam isentos do imposto de renda os seguinte rendimentos percebidos por pessoas físicas: […] XVI – o valor dos bens adquiridos por doação ou herança”.

[4]() “Art. 35. São isentos ou não tributáveis: […] VII – os seguintes rendimentos diversos: […] c) o valor dos bens adquiridos por doação ou herança, de acordo com o disposto no art. 130 (Lei n.  7.713, de 1988, art. 6º, caput , inciso XVI)”.

[5]() “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I – transmissão causa mortis e doação, de quais bens ou direitos”.

[6]() GOMES DE SOUZA, Rubens. Compêndio de Legislação Tributária. 1. ed. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1952, p. 203.

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